14 de set. de 2009

TERRITORIALIDADE E SUSTENTABILIDADE: experiência etnográfica em terras demarcadas da região do Marau - AM



Um minuto, por favor,
Criei esse blogger em 2006 com propósito de publicar produções de minha autoria e dos estudantes que oriento, além de utilizá-lo como fonte de pesquisa e orientação metodológica - NBR \ ABNT para os que buscam essas informações.Por esta razão, depois de quase dois anos, as vésperas de defender minha tese, faço como forma de relaxamento mental, essa nota informativa aos leitores. A proposta publicada em 2009 passou, em 2010, por uma significativa reformulação. Naquele momento estava fechando as disciplinas do curso e iniciava a fase de preparação para qualificação. A reformulação, o que é muito natural numa pesquisa qualitativa,  também se deu pela falta de bolsa para custear a pesquisa de campo que seria dispendiosa em razão do deslocamento [Manaus\Maués\Rio Marau\Manaus]. Um trabalho etnográfico requer do pesquisador dedicação no convívio com a população ou grupo ao qual pretende investigar. Por esta razão e recomendação da orientação contatei com a liderança da Comunidade Indígena Beija Flor I que fica no município de Rio Preto da Eva a 83 km de Manaus, onde fui bem recebida pelo Tuxaua Fausto Andrade [etnia Sateré-Mawé] e pelo presidente da Associação Etno Ambiental Beija Flor, senhor Sérgio Sampaio, líderes Sateré-Mawé [etnia Tukano] que residem em terra indígena demarcada mais próximo de Manaus para dar inicio as alterações e qualificar-me em seguida.
Hoje consigo ver como foi valorosa a mudança, a instabilidade e o desconhecido provocaram em mim um olhar mais aguçado para compreender os fatos do cotidiano que permeiam índios e não índios. Quero em outro momento divulgar o material da tese, num desses dias em que a cabeça pede descanso, aí escreverei sobre a experiência que tive dentro da Comunidade Indígena Beija Flor I.
Tomo emprestado o termo Waku Sese - saudação dos índios Sateré-Mawé, que significa "estar tudo bem", para agradecer a liderança na pessoa do Fausto e Sérgio.
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Resumo
O texto refere-se a proposta de projeto que dará corpo a tese de doutorado que tratará da terra Indígena da região do Marau, no município de Maués no Amazonas. São terras habitadas pelos povos indígenas Sateré-Mawé que se distribuiram na região do Andirá-Marau e Koatá-Laranjal, nas cidades de: Maués, Parintins, Barreirinha e Nova Olinda do Norte.
O trabalho pretende: Analisar como vem sendo efetivado o uso da terra indígena do Baixo Marau após sua demarcação, ressaltando territorialidade e sustentabilidade.  
Para alcançar a meta temos as seguintes questões: a- Conhecer historicamente a demarcação da terra indígena Mawé ocorrida em 1982; b- Observar a organização dos Sateré-Mawé no território demarcado; c- Compreender o sentido de territorialidade e sustentabilidade na percepção da população.
O interesse pelo tema veio de leituras e debates sobre a organização do povo Waiãpi do Amapá, no processo de demarcação e pós- demarcação de suas terras descrita por Dominique T. Gallois (1999), visto como caso privilegiado. “Vivem numa terra sem invasões, que eles mesmos demarcaram, numa extensão de 603.000 ha., de floresta tropical homologada ... ”.
Quanto ao “controle territorial, os Waiãpi vêm praticando de forma bem sucedida porque se mantêm adaptadas tanto as características ambientais da área quanto à sua organização sociopolítica” (GALLOIS, p.11). Para assegurar a demarcação, foi necessário ocupar sistematicamente as faixas de limites com implantação de novas aldeias que redundou em um trabalho exaustivo de preparação de agentes indígenas e na expectativa de serem atendidos pelos programas de assistência diferenciada de saúde e educação do governo federal e estadual, comenta a autora.
É nesse aspecto que estou coletando informações sobre o povo Mawé que reside no Baixo Marau, e que teve suas terras homologadas em setembro de 1982, buscando visibilidade quanto ao uso do território após a demarcação.


[1] Maria do P. Socorro Nóbrega Ribeiro é professora lotada na Escola Superior de Arte e Turismo (ESAT) da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e doutoranda na Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade de Coimbra, tendo como orientadora a professora Dra. Susana Viegas / Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa (UL) e co-tutora a professora Dra. Valéria Augusta de Medeiros Weigel da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). mnobrega@uea.edu.br/socc1@hotmail.com / 0055 92 91289451.

28 de out. de 2008

FENÔMENO UNIVERSAL DE CULTURA E SABERES ANCESTRAIS: fé, contraste e semelhança




FENÔMENO COMO FERRAMENTA MISSIONÁRIA

No Houaiss (2001) encontramos que aquele que faz missão é o que trabalha para divulgar e/ou apregoar uma idéia ou uma causa [...]. Se divulgar as idéias de Deus, narrada na Bíblia Sagrada está nesse contexto, nada tão interessante quanto descrever fatos observados durante o CONPLEI, pelo grupo de amigos, protagonista deste texto.

Para entender o que Deus tem preparado para aqueles que almejam desenvolver ministérios junto a comunidades indígenas isolados ou semi-isolados, é interessante entender que é um grande desafio. A vida missionária desenvolvida no âmbito do fenômeno religioso que lida com a dimensão subjetiva de culturas indígenas para a promoção da dinâmica, da cumplicidade e da interação com o outro, necessita observar densamente a vida cotidiana desses povos. Conhecer um acervo cultural específico, conviver com suas práticas ancestrais e compreender o amor de Cristo por essas pessoas que não é diferente da de outras. Não é necessário acumular conhecimentos ou depositar informações pré-elaboradas, mas ter capacidade de assimilar os saberes e a produção de significados sócio-culturais.

Na perspectiva do fenômeno da religião, a intenção do missionário é apregoar o ensino que transforma o homem interior e exterior, é também prepará-lo para o trabalho, para a sociabilidade e para a compreensão da cultura simbólica que exige do aprendente um olhar para a perspectiva histórica da realidade, não como “mera sucessão de fatos, e sim como articulação de acontecimentos com a natureza divina, com os semelhantes, articulando seus produtos simbólicos” (SEVERINO, 2001, p.149) que associam o conhecimento bizarro da antropologia presente na dimensão do agir humano, na percepção das relações situacionais dessa intrincada rede de realidade social e pessoal que dá as condições práticas e concentra o significado da ação vivida.

A consistência da ação missionária será reconhecida quando “assegurado um complexo articulado de elementos que traduzem competência epistêmica, técnica e científica, criatividade estética, sensibilidade ética e criticidade política” (SEVERINO, 2001, p.159). Assim, o processo de ensinar confunde-se com a própria ação de viver, então a atitude do missionário frente ao aprendente é muito mais do que um facilitador da aprendizagem ou assistente; ele é o próprio conhecimento que se mostra ao aprendente. “O preparo [...] do divulgador deve coincidir com sua retidão ética” (FREIRE, 2000, p.16).

Convergir para ou simpatizar com os ditames de uma determinada tradição religiosa significa salvaguardar a humanidade, própria e dos outros. O humanum constitui regra de ouro: “Tudo aquilo que quereis que os homens façam a vós, fazei-o vós mesmos a eles” (Mt 7,12). Entender as práticas religiosas deve nos tornar mais humanos, isto é, mais sensíveis e fraternos, mais tolerantes e plurais, em prova de sua autenticidade.

Posto que cada tradição configura-se como modelo de organização da vida e do mundo a partir da ótica religiosa, num sistema de conhecimentos prático-performativos traduzidos em ritos, fatos e valores, o fenômeno religioso na dimensão do saber entende que a elaboração de um novo saber por parte do aprendente acontece por associação, onde atos, intenções e significados descritos e comparados situam o universo religioso de cada cultura e justificam os símbolos de cada crença.

Na realidade, os índios criam representações para observar o mundo físico, social-subjetivo e até para algo que se relaciona com a metafísica. Essa estratégia, utilizada pela tradição indígena serva para mostrar seu conhecimento sobre os mundos físico, social e subjetivo e consiste em representá-los, para que eles ganhem estabilidade na busca incessante de um sentido para a vida deles próprios, uma vez que não o encontram pronto diante do diferente.

REFLEXÕES FINAIS

O texto se propôs a falar do fenômeno da religião e considera a experiência originária por estar na raiz do ser, constituída pelo relacionamento de pessoas que compreendem a idéia de morada - ethos do Altíssimo - e que esta incide na morada humana, em sendo uma prática social que produz e realiza significado, a morada pressupõe atividade cooperativa estabelecida por princípios, metas e valores para fins humanos serem atingidos e ampliados.

Deste modo, o fenômeno observado e vivido no CONPLEI, constituiu verdadeiro nicho de pesquisas, especialmente as que enfrentam resistência frente aos avanços sociais e econômicos que invadem o mundo do homem originário, imbricando-o aos reveses de estruturas de vanguarda. A visão cosmológica deste homem está pautada nos saberes ancestrais e não atribuída a formação lógica do Universo, sua consciência está voltada a um ser supremo, concebendo, antes, esse processo como resultante de sucessivas ações parciais e incompletas construídas ao longo da vida. E este papel fulcral dá ao homem desempenhá-lo como função mágico-religiosa.

Os lideres indígenas, especialmente os pajés, munidos de apetrechos de suas culturas, tratam os doentes com ervas e esconjuros (invocação mágica ou imprecação dirigida às forças ocultas ou naturais, para que obedeçam à vontade de alguém) nomeadamente através do bafejo com tabaco, para afastar os espíritos. Lançam profecias e recorrem ao transe induzido pela intoxicação de ervas, quando compreendem o plano de salvação transferem esses rituais ao Deus verdadeiro e da mesma forma invocam, clamam e bradam ao sobrenatural de Deus e ele o atende. “Clama a mim, e responder-te-ei e anunciar-te-ei coisas grandes e firmes, que não sabes” (JEREMIAS, 33:3).

Este fenômeno - ato de fé - se caracteriza como manifestação religiosa por meio de doutrinas e rituais próprios - apresenta-se entre nós e vem reconhecido como valor constituinte da condição humana. Por esta razão, a expressão religiosa demonstrada nesses rituais com danças, cânticos, grafismos e etc, como instância mediadora da própria experiência religiosa individual e coletiva, é um direito de cidadania que precisa ser disseminado e explicitado por pessoas que conhecem o poder sobrenatural que transforma e dá novos sentidos à vida, seja ela índia ou não-índia.

Portanto o fenômeno da religião observado pelo grupo teceu pequenos feixes para compreender a unidade na diversidade que se caracteriza no convívio simples com pessoas, sejam elas de diferentes culturas, pois o fenômeno especialmente o que envolve cultura étnica, é dinâmico e contraditório no olhar de quem o detém. O fenômeno é feito de caos e cosmos, diabólico e simbólico, profano e santo, ordem e desordem. Essa é a lógica do universo e também a lógica social, que busca uma

... resposta teológica para as suas aspirações, uma compreensão mais vasta que o integre, de uma forma sacral, no macrocosmo a que pertence e, simultaneamente, um encontro consigo próprio e com a divindade, encontro que lhe traga a paz e a fé. Mas também uma integração social, uma personalização da sociedade circundante, um dimensionamento microcosmático do Universo; inversamente, uma generalização, uma socialização dos seus problemas individuais, uma projeção do ego numa escala dimensionada cosmicamente, uma compreensão do SER que não passa apenas pela via ontológica (JOLLES, 1930, p.17).

Todavia, o homem social examina o cosmo e seus fenômenos e ganha de volta palavras que vêm ao encontro de suas aspirações. Dessa forma o Eterno faz-se conhecer e se mostra para o homem, por pergunta e resposta, dando lugar àquilo que chamamos místico - relativo à vida espiritual e contemplativa - (JOLLES, 1930, p. 88). Como no universo há muito fenômeno seja religioso ou não, são inexplicáveis. O homem apreendia esse mundo à sua volta, construindo o sentido para a sua experiência na forma de mitos.

Esses fenômenos incrustados de subjetividade que traz paz e fé passam a ser utilizados no processo de aprendizagem de missionários ao chegar ao campo, além de suscitar discussões relativas ao enraizamento/desenraizamento da cultura do humano. Essa afirmação pode ser delineada por Morin (2000, p. 61) onde o aprendizado, “[...] deveria mostrar e ilustrar o destino multifacetado do humano, o destino da espécie humana, o destino individual, o destino social, o destino histórico, todos entrelaçados e inseparáveis”.

Assim, desenvolver idéias a partir da fenomenologia da religião deve ser uma das vocações essenciais do missionário do futuro por ser uma vertente do estudo da complexidade humana. Este conduzirá a tomada de posição de consciência da condição comum a todos os humanos, da rica e necessária diversidade dos indivíduos sociais e das culturas sobre nosso enraizamento como cidadãos da Terra. Com isso seremos mais cordiais, humanos e espirituais podendo dar razões e oferecer significados existenciais ao outro, racional e incondicional como o Mestre nos ensinou.

Em razão dos fenômenos observáveis descobertos pelo grupo, pode-se compreender que, em trabalho de campo, seja no ensino ou na aprendizagem, se deve explorar a diversidade de valores. A necessidade da presença de saberes que alicerçam a história no ensino é indiscutível, principalmente, porque, apoiando-se nas palavras de Ricoeur (1984), o discurso das linguagens (oral, gestual, visual, facial e corporal) propõe “refigurações clarificadas ou interpretáveis”, e é por meio da interpretação dessas que o funcionamento psíquico humano se expande, enriquece e se reestrutura perpetuamente.

Essa função de reestruturação é, pois, de fundamental importância, uma vez que o discurso do homem dá sentido ao caos e às suas ações. Nelas, ele encontra modelos de ação e avaliação de suas ações. Assim, o fenômeno da religião tem papel relevante na recuperação da cultura natural e no trabalho missionário como ação social, quando índio e não-índio se encontram com o Criador por meio de suas histórias multiculturais.

A partir do fenômeno multicultural, por exemplo, o instrutor pode explorar no sentido de os aprendizes enriquecerem sua perspectiva de mundo, de ciência e de moral, ao comparar como essas questões veiculadas no texto em estudo e na cultura da qual o aprendiz faz parte, a percepção do aprendiz a ver “mundos” de Habermas com suas diferenças de cultura para cultura, como são produtos histórico-sociais próprios de uma determinada comunidade.

Por fim, não menos importante, o texto inacabado por não esgotar o estudo acerca do tema proposto. Termina dizendo que, a partir deste, outros olhares teórico/didáticos podem ainda ser desenvolvidos. Sintetizando o propósito, sai por empréstimo a palavra de Paulo: “Ninguém busque o proveito próprio; antes, cada um, o que é de outrem” (1 Co.10.24). “... rejeitamos as coisas que por vergonha se ocultam, não andando com astúcia nem falsificando a palavra de Deus; e assim nos recomendamos à consciência de todo o homem, na presença de Deus, pela manifestação da verdade”. (2 Co. 4.2)

REFERENCIAS

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UKWATCHALI, Padre José Adriano. O fenômeno religioso na cultura umbundu como processo do desenvolvimento de angola. s.d., s.p.

27 de mai. de 2008

RIBEIRINHOS MIGRANTES DA AMAZÔNIA: [re] significando o imaginário cultural na prática de manejo e uso da floresta

Em abril passado, estive participando de uma mesa redonda em Salamanca /Espanha. Não foi fácil chegar por lá, depois de uma atribulada situação no Aeroporto Barajas em Madrid, onde fiquei detida por aproximadamente 10 horas.
Os fatos não abafaram a qualidade do trabalho, a força interior que me conduz, abrilhantou o meu ser diuturnamente, mesmo sem minha bagagem, foi outro desacerto da viagem, o reconhecimento veio quando a plenária se mostrou interessada e o Coordenador dos trabalhos, daquele dia, se postou para me cumprimentar.
Veja se não valeu a pena o sacrifício! É só ler e deleitar-se com as idéias.




Maria do P. Socorro Nóbrega Ribeiro
Universidade do Estado do Amazonas
mnobrega@uea.edu.br

A expansão territorial do Brasil ainda tem sido pouco pesquisada, apesar do valor estratégico e atual que reveste a questão. Historiadores amazonenses, como Arthur Cézar Ferreira Reis, ex-governador do Amazonas, e Samuel Benchimol, contribuíram com relevantes obras da história da ocupação e formação das fronteiras da região. A obra documental e os estudos legados pelo historiador português Jaime Cortesão estão a merecer renovada atenção da parte de historiadores e cientistas políticos brasileiros, se quisermos reconhecer a formação de nossas fronteiras.
Em decorrência, os equívocos com os quais se defronta o conhecimento da realidade amazônica transcorrem da carência de ensinamentos geopolíticos mais sólidos, embasados em uma historiografia mais rigorosa acerca da legitimidade da ocupação portuguesa dos territórios amazônicos, que abrangeram no passado o estado do Maranhão e Grão-Pará. A maioria das contribuições existentes data dos anos 1950-60 e hoje são pouco conhecidas. É o caso das obras fundamentais de Reis e de Jaime Cortesão.
Desse compendio a proposta traz para debate a cultura do caboclo migrante - ribeirinho - levando em conta o assombreamento dos costumes ancestrais à formação de novas identidades com base no mundo imaginário estruturado a partir do novo e a sustentação das tradições hora desaparecidas do convívio desse povo e que é suscitada por historiadores, educadores, filósofos, sociólogos e antropólogos que tentam desbaratar, chamando a sociedade para o debate.
A discussão surgiu no campo de pesquisa quando aluna do mestrado em meados de 2001, ao perceber o fluxo migratório ocorrido nos últimos quarenta anos em direção a Manaus e visa estabelecer um diálogo interdisciplinar entre saberes a partir da identidade cultural e do processo de acomodação vivido pelos migrantes, destacando o universo simbólico comum no dia-a-dia da população campo.
Arenz (2000) destaca este homem como ribeirinho, povo das barrancas dos rios, fortalecido pelas múltiplas configurações de resistência contra o poder hegemônico da época que os mantinha em constantes repressões, sendo estes: colonos, negros, tapuios e “índios-aldeados”. Esta condição vivida na década de 1830, em que a província do Grão-Pará, tinha pouco mais de 80 mil habitantes, sem incluir a população indígena não-aldeada que esperava ter seus direitos reconhecidos. Os escravos negros lutavam pela abolição da escravatura e os profissionais liberais nacionalistas e parte do clero pelejavam por uma independência mais efetiva que afastasse os portugueses do controle político e econômico.
Foi no campo de pesquisa que o tema passou a ter maior relevância em minha vida social e profissional, daí inaugurei no convívio com a população campo, gente simples de especial valor, novo momento intelectivo. Travei uma luta na tentativa de responder ou clarear categorias relacionadas aos saberes cotidianos daquela comunidade, que a meu ver encontra-se distanciada dos mesmos, seja no plantio do roçado, na coleta de frutos, no cultivo de horta doméstica, de ervas medicinais e outros saberes do dia-a-dia. Todos utilizados como fonte de alimentação ou cura de males pelas comunidades rurais que tem a cibalena, o anador, a andiroba, a copaíba, a mucura-cáá, o boldo, o mastruz, o cragiru, malva-grossa, hortaliças em geral e tantos outros de essencial valor.
Antevejo que trabalhar cultura tendo como eixo o mundo imaginário da floresta é buscar compreender os saberes naturais existentes na relação homem/meio/homem na perspectiva da subsistência planetária estabelecida há décadas, sem, tampouco esquadrinhar àquela Amazônia que coexistiu com invasões políticas e eclesiásticas, mas expondo a miscigenação cultural agregado a ela que sempre foi e ainda é objeto de cobiça, pilhagem e inspiração de muitos que historiaram metaforicamente o mundo real e imaginário da população nativa.
Destacamos Vicente Carvajal, Cristóvão de Acuña, João Felipe Bettendorff, Luiz e Elizabeth Agassiz, Frederick Hartt, Alfred Russell Wallace, no ranque nacional temos Alberto Rangel, Euclides da Cunha, Peregrino Júnior, Antônio Olinto, Samuel Benchimol contando do Inferno Verde; À Margem da História; Matupá; Histórias da Amazônia; Sangue na Floresta; Amazônia Formação Social e Cultural (1999) e tantos outros. A história, ainda hoje a metamorfoseia como mundo intocável, pulmão do mundo, terra de manejo, paraíso ecológico e outros adjetivos, que, segundo suas concepções unem o mundo real ao irreal.
Desse calidoscópio de cultura brotou a necessidade de discutir dialeticamente os saberes naturais na tentativa de delinear indagações extraídas do campo investigativo ao lidarem com cultura e subjetividade na expectativa de ressignificar os saberes tradicionais tomando a prática cotidiana como elo re-construtor de novos conhecimentos.
Dessa tradição, composta de sistemas co-construídos de signos em que a cultura não é um poder, antes um contexto, onde fenômenos se tornam inteligíveis, susceptíveis de serem descritos com consistência, desejo expressar, para discussão, algumas falas coletadas no campo com relação aos saberes da floresta no tocante ao cultivo e uso da flora na expectativa de ressignificar conhecimentos simbolizadores da cultura e trabalhar para a compreensão do novo.
A discussão pretende trazer falas que entrecruzam saberes agregadas às novas informações e demonstre que os mesmos não poderiam ser visto de outra forma senão a partir das histórias de vida da população envolvida na questão. De forma intencional e/ou involuntária servirá como arcabouço para o vazio existente nos debates onde homem/meio/homem manifestam o sobrenatural e possibilitará a discussão dialética entre interlocutores que lidam com as questões. Nisso está à relevância da discussão por ir além dos limites de reformulações humanas, chegando aos valores naturais e ecológicos que são retomados com grande força na determinação de novos códigos, em todas as áreas do conhecimento cientifico e da vida prática.
Frente aos desafios, BODNAR IN KÜPER (1993:279) define como “un proceso social, permanente, inmerso en la cultura propria, que permite conforme a las necessidades, interesses y aspiraciones de um pueblo, capacitarse para el egércicio del control cultural del grupo étnico y si interrelación com la sociedad hegemónica en términos de mutuo respeto”. A sociedade passa por mudanças sociais permanentes, a maioria emergindo de culturas naturais e, segundo as necessidades e interesses capacitam-se para interagir com sociedades hegemônicas em termos de mútuo respeito ou atitude brutal. Sendo o homem um ser inacabado, porém astuto, é capaz de ver a urgência de lutar pela vida e a necessidade de escolher entre as várias possibilidades que ela nos oferece no momento (GONZÁLES, 2005).
Marx apud González (2005) já assinalava o caráter inconcluso e dinâmico do humano por estar caminhando para sua plenitude, mesmo tendo dificuldade em se dar conta das necessidades inerentes, por isso ele propõe a práxis como meio de libertar este homem de suas alienações e assim, obter realizações humanas plenas de transformações da realidade.
São dificuldades que se estruturam por vez em sistema de idéia parcial ou totalmente inconsciente e se tornam capazes de interferir no saber pensar, sentir e fazer de populações ao agregar padrões pré-estabelecidos pelo sistema globalizante, indentificado pelo grande capital financeiro esquecendo o grande capital cultural. Para alguns sociólogos, antropólogos e educadores, estes padrões tendem a alterar o comportamento social e a aprendizagem humana, fazendo do mundo um ambiente cada vez mais dotado de novos significados e representações (BOURDIEU, 1989; DURAND, 1997/1998 e GONZÁLEZ apud FREIRE, 2006), onde populações tradicionais não conseguem se inserir no moderno e passam a viver uma antropologia da deformidade defendida por Boas.
A idéia é, à medida que as sociedades se tornam maiores com divisão social, certos domínios de atividade se tornam relativamente autônomos: “No interior desses setores ou campos da realidade social, os indivíduos envolvidos passam, então, a lutar [...], sobretudo, pelo direito de legitimamente classificarem e hierarquizarem os bens produzidos” (NOGUEIRA apud BOURDIEU, 1983:36), principalmente aqueles que fazem parte do acervo cultural herdado de seus antepassados que muitas vezes vêm-se perdidos nos valores e espaços para o capital especulativo.
Na Pedagogia da Autonomia, Freire ressalta que temos um aliado. A escola num primeiro momento é capaz de explicar os enfretamentos culturais com estudos e análises dos procedimentos educacionais utilizados para compreender e comparar a miscigenação cultural. O homem amazônico que vive paradigma dentro das ciências da educação, demonstrando peso social sobre o aprendizado natural, reconhece que o desempenho escolar não depende unicamente da literatura. Caso contrário a educação perderia o papel que lhe fora atribuído, de instância transformadora e democratizadora das sociedades e passaria a ser vista como uma das principais instituições por meio da qual se mantêm e legitima os privilégios sociais (BOURDIEU:1983).
Reafirma o autor que é possível conhecer o mundo sociocultural através da configuração fenomenológica, objetivista e praxiológica, onde o conhecimento fenomenológico representaria a corrente da etnometodologia e o interacionismo simbólico, capaz de captar experiências primeiras do mundo social, tal como vivida cotidianamente pelos membros da sociedade.
Durkheim indica os sistemas simbólicos da educação, como estruturas estruturantes, como elementos que organizam o conhecimento ou mais amplamente a percepção que os indivíduos têm da realidade. Nogueira apud Lévy-Strauss (2006:36) analisa os sistemas simbólicos como estruturas estruturadas, ou seja, como realidade organizada em função de uma estrutura subjacente que se busca identificar. A corrente marxista, concebe os sistemas simbólicos, antes de mais nada, como instrumento de dominação ideológica, como recursos utilizados para legitimar o poder de determinada classe social de manipulação e dominação política.
Forquin (1995) também valorizara a dimensão cultural e ideológica da educação [...] enquanto base e transmissor estrutural da reprodução social. Para diferentes classes e grupos sociais, diferentes conhecimentos (quantidade e qualidade) e habilidades (comandante e comandado) que legitimam a cultura, preparando de modo diferenciado, a comunidade para o trabalho de acordo com classe social, raça e gênero.
E tal situação há de continuar enquanto o poder de controle sobre os conteúdos, estruturas e financiamento da educação depender daqueles que dispõe também do poder econômico e político no seio da sociedade capitalista - eis a razão porque toda democratização da educação é sem dúvida ilusória (BOWLES e GILIS:1976, apud FORQUIN, 1995:62).
Bourdieu e Passeron (1975) por sua vez, atribuem a desigualdade do sucesso escolar às desigualdades culturais entre os grupos, a distinção do "capital cultural" e a disparidade de "ethos de classe", como eles denominam para explicar desigualdade. Portanto, a profundidade da discussão está estabelecida não só pela pesquisa organizada e narrativa coletadas no campo, mas pelo contínuo confronto da sociedade por entender o enfoque e o significado multiétnico das culturas subjacentes, fazendo com que os filhos da nova geração se apeguem ao que é apregoado pela grande mídia (multimídia).
O conceito de cultura está relacionado ao plano simbólico e imaginário ou de criações que propiciam à comunicação humana nas diversas formas de linguagens – oral, corporal, fala, gestos, escrita, etc –. A cultura é prática, posto que se manifesta de formas variadas nas diversas atividades humanas – do concreto ao sensível e imediato. Bourdieu (1998) procurou demonstrar como as culturas das classes dominadas são marcadas pela lógica da comunicação a séculos, na objetividade das estruturas sociais e na subjetividade das estruturas mentais, impondo-se como universal, natural e evidentes. Por isso, pensar cultura no plano da antropologia faz botar no homem o dever, não só de reinterpretar saberes, sobretudo de populações migrantes, socialmente construídos na prática comunitária em relação ao ensino de conteúdos (FREIRE, 2002:33), como também aplicá-los em favor da sociedade.
Do campo de pesquisa verifiquei questões relacionadas a vida partilhada, sentimento cooperativo e o assombreamento da cultura cabocla. Vi na sociedade - igreja, escola, ong’s e população em geral - o caminho integralizador, socializador e articulador da coletividade que involuntariamente idealiza novos conhecimentos.
Conquanto se afirme que esta sociedade formada por espaço de luta entre tendências de diversos grupos, observei que a cultura da floresta corresponde ao marco de embate caracterizado por ações de interesses, já que a mesma requer um empenho sobre-humano por estar contida nas novas identidades que se fortaleceu nos últimos anos, ganhando configurações à medida que a sociedade se defronta com enigmas sociais impressos em grande parte pela mídia pressionada pelas grandes “estruturas sociais” que regem a promoção e o desenvolvimento da coletividade emergente marcada pelos movimentos globalizantes ora vistos.
De fato, lembra Weigel (2000), a população migrante está vivendo um momento propício para assentar-se em rotinas de vida com grandes transformações e mudanças, sejam de natureza sócio-cultural, sejam de caráter político-econômico. Portanto, cabe a sociedade desenvolver a capacidade de expressar e comunicar suas idéias, participar e interpretar a cultura, intervir pelo uso do pensamento lógico, da criatividade e da análise crítica, além do exercício cotidiano dos seus direitos, deveres, atitudes e condutas como atitude de respeito às diversidades.

REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO
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* O Termo caboclo evoca vários significados relacionados à geografia Amazônica; de descendência e ‘raça’ (indígena, mestiça), das hierarquias e relações sociais (conquista - ibérica, submissão, manutenção da relação de dívida e de crédito no aviamento, todas ligadas à história da ocupação européia na Amazônia). Geralmente, definido a partir de sua submissão dentro do processo econômico da Amazônia dos séculos XVIII e XIX, sem que se frise muito a sua condição étnica própria. Cf. ARAÚJO, Carlos Moreira Neto, 1993.
Descendente de europeu e índio brasileiro, de pele acobreada. Tapuia, caipira, roceiro, pessoa desconfiada ou traiçoeira, revelando assim a carga pejorativa que lhe é inerente. Cf. BUARQUE, Aurélio de Holanda Ferreira, 1997.
O termo é usado na literatura acadêmica para fazer referência direta aos pequenos produtores rurais de ocupação histórica. No discurso coloquial, a definição da categoria social é complexa, ambígua e está associada a um estereótipo negativo.
Na antropologia, é definido como camponês amazônico é objetivo e distingue os hábitos tradicionais dos imigrantes recém-chegados de outras regiões do país. Cf. LIMA, Deborah de Magalhães.